Tudo, todos os dias, é novo, paisagens, culturas, línguas e amigos

Travessia do passo de Zojila, 3.530 m. (Índia). © Antonio Olinto

Existe uma pergunta muito comum, mas que sempre fico constrangido ao responder: “De todos os países que você viajou de bicicleta, qual o mais bonito?”

Cada pessoa tem um gosto, o belo se apresenta de várias formas. Eleger um lugar é muito desonesto com os outros, ainda mais quando falo de uma viagem de bicicleta por mais de 81 parques nacionais em quatro continentes.

Entretanto, quando me perguntam qual a maior aventura da viagem da volta ao mundo, eu falo com muita segurança: Índia. Para esta região dedico dois capítulos do meu livro “No Guidão da Liberdade”. O livro está em sua quarta edição e gostaria de transcrever alguns trechos:

“Já tinha ouvido falar muito sobre a Índia, um país que estava em meus sonhos de viagem há bastante tempo. Todas as descrições que obtive a seu respeito não foram o bastante para diminuir o impacto da chegada…”
“…quando o avião pousou em Déli, pego o jornal e, na primeira página, vejo que se deflagrou uma grande epidemia de peste pneumônica….”

“…Um dia contei trinta pessoas e um camelo ao meu redor para ver minha performance na troca de pneu. Nesta hora, reparei um estranho traço da cultura indiana.

Sempre que alguém tosse, não busca proteger a boca. Da mesma forma, volumosos escarros e sonoros arrotos não são considerados deselegantes, mesmo em delicadas mocinhas ou educadas senhoras em plena mesa. Tendo em vista a frequência em que me encontrava ao centro de um círculo fechado com pessoas se espremendo para me observar, comecei a ficar nervoso com as chuvas de bacilos, bactérias e vírus em minha direção…”

“…Com mais informações sobre o país pude fazer um bom plano de visita pela Índia. Meu trajeto passaria por lugares famosos, parques nacionais e ainda uma volta pelos Himalaias…”

Não me constranjo ao descrever como “aventura”, pois para mim a aventura não é isto ou aquilo, ela tem uma definição muito mais subjetiva e acontece sempre quando ultrapassamos nossos limites de conhecimento e consequentemente medo. Em meu caso, entrar em um país em guerra sempre foi temerário.

“…Quando cheguei em Caxemira outros conflitos me esperavam. Desta vez, mais emocionantes. Neste estado concentra- se a maior população muçulmana do país (maior que toda a população muçulmana do Paquistão). Principalmente no Vale de Caxemira, há uma tendência separatista que busca a independência política do estado. Diante da repressão governamental, os manifestantes optaram pela luta armada, claro que com apoio encoberto do Paquistão.

Minha viagem sempre teve o caráter recreativo. Estava viajando porque apreciava fazer isto, não para demonstrar nada, nem para ser o primeiro a fazer isto. Entretanto, já estava cansado de ouvir as pessoas dizerem: -‘Ali é perigoso… Não vá lá.’- É sempre assim, geralmente as pessoas temem o que não conhecem muito bem.

Taj Mahal, Agra. (Índia). © Antonio Olinto

Desta vez senti o desejo de continuar em frente e viver a grande aventura que estava por vir. ‘Cruzar uma região em guerra, que legal!’

Sempre ponderei meus riscos, pois sabia que pelas minhas condições financeiras não poderia arriscar muito em meu trajeto. Concluí que não estava ali só pelo prazer de sentir aquele frio na barriga que dá ao sentirmos fortes emoções. Estava ali porque era o único caminho. Em outras palavras, somente seguia meu caminho e nada mais, como sempre fiz. Perigos existem em qualquer lugar e o que me guardou deles até agora, estará me guardando daqui para frente também…”

“…Posso dizer que esta não foi uma boa experiência. A guerra civil transforma todos os cidadãos em suspeitos. Isto aumenta a repressão militar e diminui a amabilidade do povo. Pessoas tristes, velhinhos sendo revistados, medo. Não gostei do que vi….”

“…Estava contente por não ter desistido de vir por terra, entretanto preocupado com o que vinha pela frente.

Finalmente obtive informações mais precisas a respeito das estradas.

© Antonio Olinto

Só há duas vias para chegar à cidade de Leh, capital da região de Ladakh. Uma através de Manali e outra através de Sirinagar. Ambas estão oficialmente fechadas desde final de setembro. O governo indiano não se responsabiliza por elas, pois não tem verbas nem equipamentos para limpar a neve que, nesta época do ano, pode vir a qualquer momento. Deveria seguir por minha conta e risco.

A parte mais perigosa não é o passo mais alto, e sim o primeiro grande passo, pois costuma segurar a umidade dos vales em forma de neve. Terei que, rapidamente, entrar e sair da região de Ladakh antes das primeiras nevascas, senão ficarei preso até o próximo verão, quando a estrada é desobstruída. Há também a chance de sair da região pegando um avião em Leh, mas é difícil encontrar uma vaga.

Daqui até Leh são mais de 400 km e alguns passos muito altos. Depois, terei que ir para estrada mais alta do mundo, voltar a Leh e retornar pela estrada Leh – Manali com 485 km de extensão e outros passos também altos (inclusive o segundo mais alto do mundo). Para concretizar todo este trajeto necessito primeiro de muita sorte para não pegar neve, depois muita força, pois os quase mil quilômetros que enfrentarei serão, provavelmente, os mais duros de minha vida…”

Encontro com locais que faziam a manutenção da estrada no caminho do Passo de Fotula, 4.109 m. (Índia). © Antonio Olinto

“…Descobri que apenas 39 km me separavam da estrada mais alta do mundo mas, para chegar lá, teria que conseguir uma autorização especial, pois só era permitido o acesso de grupos de turistas acompanhados com escolta policial.

‘Me bati’ durante cinco dias para conseguir esta autorização (era o primeiro verão em que o acesso ao passo estava sendo permitido, havia ainda muitas restrições). Falei com todas as autoridades locais, pareciam querer algum tipo de propina. Como não sou adepto deste tipo de expediente, acabei brigando e consegui convencê-los de que não vinha de um país rico, que tinha sido difícil chegar até Leh e não poderia voltar pela falta de uma autorização.

Com o papel na mão, comecei a subir às 12:00 h  do dia 21/11 e só cheguei no final da tarde de 22/11. A estrada tem inclinação média de 53 m por quilômetro, sendo que a última etapa é só terra, pedra solta e neve batida. Mesmo empurrando durante quase todo o dia 22, um minúsculo arame perfurou meu pneu traseiro. Nunca sofri tanto para trocar um pneu, ainda mais pela altitude (aproximadamente 5.000 m).

Cheguei ao topo muito cansado. Havia um posto do exército cuidando da área. Eles oferecem um copo de chá aos que chegam, além de socorro médico nos casos de emergência respiratória.

Pokhara. (Nepal). © Antonio Olinto

Nesta noite voltei a sentir dor de cabeça e os outros sintomas de problemas de altitude, passei muito mal, mas o pessoal do exército me socorreu. A temperatura chegou a -20  C. Registrei, então, a menor temperatura da viagem e a maior altitude, passo de Kardung-la a 5.602 m, a estrada mais alta do mundo…”

“…No terceiro dia de viagem, antes de começar a subir o passo de Taglang-la (o segundo do mundo com 5.328 m), atravesso os portões do último posto avançado do exército. Dois soldados me param e dizem que não posso prosseguir….”

“…Não sei o que teria acontecido se continuasse. Hoje penso que provavelmente morreria congelado. Dois dias depois de minha saída tive notícias que a neve acumulou-se aos metros e a temperatura baixou a – 40 C….”

Passo de Kardung-la, 5.603 m. É a estrada motorizável mais alta do mundo. © Antonio Olinto

“…Mal percebemos a chegada da noite e com ela começaram as escaramuças. Bombas explodindo e metralhadoras disparando por todos os lados quebraram o silêncio do convento….”

Mesmo com todos estes arquétipos de aventura, acredito realmente que a grande aventura que fiz foi em outro caminho. Não aquele em que conheci lugares e pessoas diferentes ou aquele em que enfrentei riscos, mas sim a grande aventura de me conhecer e me enfrentar, pois acredito que o homem é sua última fronteira.

Por coincidência, foi nesta região mística que algumas revoluções aconteceram, veja mais um pouco do livro:

“…Há mais de um ano e meio saí do Brasil com US$ 4.500,00, nunca fui um atleta, mas fiz quase meia volta ao mundo em bicicleta. Passei por lugares sagrados e em guerra, frios e quentes, selvas e desertos, planícies e montanhas.

Pneu furado com plateia de 30 pessoas e um camelo, no caminho para Jaipur. (Índia). © Antonio Olinto

Tudo, todos os dias, é novo, paisagens, culturas, línguas e amigos. Cada povo tem um código de representações e sinais para a amizade, a paquera, a beleza, a educação, o respeito etc… O ‘novo’ virou rotina. Isto confunde minha cabeça. O que iria ver agora? O que seria realmente diferente do que já passara? Diante de minha atual experiência, o que representará um verdadeiro desafio?

Mesmo sabendo que há ainda muito mais para transpor, nada me assusta depois da última etapa da viagem. Nos Himalaias, vi o quanto ‘o acreditar’ (ter fé) me faz poderoso. Aprendi que, se concentrasse no esforço de cada dia, nenhuma distância seria grande demais. Descobri ainda que ao estar preparado para tudo poderia tirar proveito até da derrota, portanto, hoje vejo que não tenho o que temer ou perder.

Sem o medo, a viagem não representa um desafio tão grande quanto antes. Então me pergunto: Para onde devo caminhar agora? Em busca do quê?

Lao Tsé (sábio chinês que viveu 500 anos antes de Cristo) dizia que para conhecermos o mundo não precisamos nem mesmo abrir as janelas de nossa casa. Segundo alguns estudiosos a expressão ‘janelas de nossa casa’ representam os sentidos do corpo, portanto, para conhecer o mundo o homem deveria interiorizar-se desprezando os estímulos vindos dos sentidos, isto é um dos princípios da meditação. Tenho vivido muitos estímulos das diversas culturas e aventuras que vivo a cada dia, mas o conhecimento do mundo passa pelo auto-conhecimento, a interiorização. Fechar todas as janelas dos sentidos e voltar-se a mim mesmo, enfrentar-me, esta é minha última fronteira.

Por mais que a aventura me traga estímulos externos e que mude completamente minha rotina a cada país, não posso fugir de mim.

Soldados. © Antonio Olinto

O fato de ver o mundo lentamente, na velocidade da bicicleta, tem demonstrado a importância do caminho, ele me leva onde devo ir e me dá as experiências pelas quais devo passar, mesmo que a princípio não as compreenda. Continuarei trabalhando minha calma e tentando aprender e melhorar sempre.

Gosto da minha vida de nômade, pois assim consigo quebrar a equação tempo x dinheiro. Agora tenho todo o tempo que desejo e necessito para mim mesmo. Este estilo de vida está me fazendo mudar de valores. Liberdade, equilíbrio, saúde e paz têm sido meus objetivos, e a eles dedico a maior parte do dia. Dinheiro, posição social, sucesso profissional, roupas, carros, nada parece muito importante agora. A necessidade destes produtos é tão distante como o Brasil da Índia.”