Ao divulgar o cicloturismo no Brasil percebemos os vários preconceitos que as pessoas de modo geral têm quando falamos de viagens de bicicleta, por isso, parte de nosso trabalho é desmistificar a aventura de bicicleta.

Em nossa última viagem pelo Oriente Médio, pedalamos por quatro meses entre Turquia e Irã, percorrendo mais de cinco mil quilômetros. A grande mídia estigmatiza essa região, colocando todos os países e pessoas em um único pacote, com um grande rótulo em cima.

Preparamos uma série de artigos sobre nossa viagem onde tentaremos mostrar como a bicicleta pode mostrar um país, e por que não dizer um mundo, diferente daquele exposto nos noticiários televisivos.

A preparação do equipamento, o planejamento, a viagem e as impressões na perspectiva de quem pedala lentamente, vivendo cada oportunidade que o momento oferece para conhecer e experienciar o país.

Se tiver dúvidas ou curiosidades aproveite para comentar ou perguntar, no último artigo falaremos sobre os resultados positivos e/ou negativos de nossas estratégias e equipamentos, bem como poderemos responder as perguntas que nossos caros leitores (???) tiverem sobre a região

Enquanto entrávamos nas belas instalações do escritório daquela grande multinacional, fiquei imaginando qual seria a intenção deles ao chamar-nos para uma reunião. Após sermos anunciados, desceram seis pessoas para nos receber. Pensei: “Nossa! Vai ser eu e a Rafa contra seis?”

As apresentações foram seguidas de cumprimentos calorosos e comentários do tipo:

Sr. Antonio Olinto, muito prazer! Eu já li seu livro No Guidão da Liberdade…

Logo percebemos que a reunião seria feita com somente três pessoas, os outros, mais jovens, vieram somente para nos cumprimentar. Isso é um claro sinal de que estou velho, mas, mesmo assim, fiquei feliz com a recepção.

Quando sentamos a Rafa, eu, o Sr. Marcelo Catalan (Gerente Técnico), a Marina Richwin (Coordenadora de Marketing) e o Bruno Rosa (SBCU – Specialized Bicycle Components University), começamos logo a expor nosso histórico de trabalho de mais de vinte anos com o cicloturismo, desde a volta ao mundo até a produção de guias e dvd’s, quando, de repente, nos interromperam dizendo que já conheciam seu trabalho.

Pode parecer estranho, mas essa foi a primeira vez em minha vida que falei com um grupo de marketing de uma fábrica de bicicleta que já conhecia nosso trabalho (já falei com várias fábricas nestes anos). A razão era simples, e o Sr. Marcelo explicou sorrindo:

Paramos de utilizar amortecedores em nossas bicicletas de viagem e com isso economizamos até dois quilos de peso em cada bicicleta (o garfo rígido que utilizamos pesa cerca de 700g). © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Olinto, apesar de sermos uma grande multinacional, aqui dentro só tem ciclista…

Daí para frente a conversa melhorou ainda mais, não precisamos explicar sobre nenhum dos princípios fundamentais de uma bicicleta para cicloturismo, o Bruno Rosa já tinha toda a noção das necessidades, pois também costuma viajar de bicicleta. Passamos por vários detalhes técnicos concordando com tudo, e no final a Marina comenta:

A Specialized gostaria de apoiar em longo termo o seu projeto como ele é, queríamos que vocês fossem nossos embaixadores no Brasil e testassem nossa bicicleta para cicloturismo, a Awol.

“A Specialized gostaria de apoiar em longo termo o seu projeto como ele é, queríamos que vocês fossem nossos embaixadores no Brasil e testassem nossa bicicleta para cicloturismo, a Awol.”

Não é preciso dizer que ficamos muito emocionados com o convite, ainda mais sendo a Alwol um modelo com tudo que um cicloturista brasileiro sonha em uma bicicleta para cicloturismo, e concordamos imediatamente:

Os garfos, quando saem de fábrica, possuem a espiga bem longa para poder se adaptar a qualquer modelo de bicicleta. Local da foto: Oficina do De Bike, em Bauru. © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Perfeito! Podemos utilizá-la já em nossa próxima viagem de aventura que começará em alguns meses, que tal?

Puxa, que pena! As bicicletas ainda não estarão no Brasil, vocês concordam em utilizar outra bicicleta e depois pegar as Awol definitivas? Qual modelo vocês achariam melhor?

Mais uma vez estávamos diante de um grande dilema que vários cicloturistas enfrentam e muitos vêm nos consultar: dentre tantas opções, qual bicicleta escolher para suprir as necessidades de uma aventura?

Geralmente respondemos com uma pergunta: para onde vai viajar, ou o que vai fazer com sua bicicleta?

Numa bicicleta, cada pequeno detalhe faz uma pequena diferença que, com o tempo pedalado, passa a ser importante, então quanto mais precisa for a intenção, mais específica poderá ser e a bicicleta ficará melhor customizada.

Por outro lado, é comum que o desejo do cicloturista seja amplo e aberto, e no caso de uma aventura de verdade, talvez nem saiba exatamente o que irá encontrar pela frente.

Nestes casos, a melhor bicicleta terá que ser híbrida, preparada para qualquer tipo de terreno e região.

Mesmo que tivéssemos no Brasil modelos específicos para cicloturismo, teríamos que fazer algumas adaptações pessoais. Na ausência destes modelos, as adaptações têm que ser ainda mais radicais.

Preferimos perder rendimento em estradas asfaltadas que em caminhos de terra, pois os últimos já são difíceis por si só. Daí nossa opção por bicicletas off road, que inclusive são feitas de forma mais robusta, mais resistentes a qualquer tipo de solicitação.

Procuramos evitar os modelos top de linha, pois eles geralmente priorizam o desempenho, seus componentes são os mais leves, mas a durabilidade pode não ser a melhor. Os modelos medianos, ao contrário, trabalham com equipamentos mais simples, de fácil reposição e com maior longevidade. Isso sem contar o fato de serem mais baratos.

Pequenos detalhes fazem uma bicicleta melhor para o cicloturismo, dentre todos os modelos Specialized que temos no Brasil acabamos escolhendo a Pitch, pois é o modelo em que teríamos que fazer a menor quantidade de alterações:

Pequenos detalhes fazem uma bicicleta melhor para o cicloturismo, dentre todos os modelos Specialized que temos no Brasil acabamos escolhendo a Pitch, pois é o modelo em que teríamos que fazer a menor quantidade de alterações. Local da foto: fronteira Kapiköy/Razi (Turquia/Irã). © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Aro

O melhor aro para conseguir peças de reposição em pequenas localidades ainda é o 26, mas o mercado tem oferecido somente produtos de baixa qualidade para este nicho. O segundo melhor aro em facilidade de reposição é o 27,5, que pode receber raios, câmara e pneu utilizados em bicicletas do tipo barra forte. Em uma emergência não ficará na mão. A Pitch possui aro 27,5.

Quadro

O quadro da Pitch já possui pontos para receber os parafusos do bagageiro, é só instalar.

Numa viagem abrimos e fechamos o alforje várias vezes e o descanso da bicicleta é algo imprescindível para nós (conhecido como pezinho). O quadro da Pitch possui pontos reforçados para receber o descanso da bicicleta. Como carregamos pouco equipamento e de boa qualidade, necessitamos de alforje somente na parte de trás, nossa preferência é por descanso traseiro, que é mais estável.

A geometria de uma bicicleta de montanha é muito agressiva e pouco estável para o cicloturismo mas, como geralmente pedalamos por caminhos de terra, essa postura nos favorece. Entretanto, em nossa próxima viagem a previsão era de fazer grande quilometragem em terrenos asfaltados e optamos por fazer algumas alterações que explicaremos na sequência.

Relação

Nas discussões sobre aros, muitas pessoas se esquecem de pensar nas compensações necessárias para obter a redução necessária para vencer a mesma subida nos aros 27,5 ou 29. Consideramos ideal a relação que vem na Pitch aro 27,5: a menor coroa tem 22 dentes e a maior engrenagem da roda-livre tem 34 dentes.
Alterações e customizações:

Selim

Cada um tem uma preferência e não vemos uma ciência nisso. As únicas dicas que podemos dar são baseadas em nossas preferências: selim macio de gel, sem molas ou amortecedores, de tamanho médio a pequeno (é importante medir a distância entre seus ossos ísquios para saber).

Pedais

Preferimos utilizar pedaleiras, assim podemos levar um único calçado impermeável-respirável e bom para caminhadas em parques e cidades.

Pneus

Pneus de montanha não duram muito tempo em uma viagem. Escolhemos pneus com maior quantidade de borracha no ponto de contato com o solo para ampliar sua longevidade. Pneus que suportam maiores pressões são ideais, pois com carga passam a oferecer melhor rendimento tanto em estrada de terra como asfalto.

É comum que o desejo do cicloturista seja amplo e aberto, neste caso, a melhor bicicleta terá que ser híbrida, preparada para qualquer tipo de terreno e região. © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Amortecedores

Como toda bicicleta de montanha, o amortecedor é uma peça já inclusa. Entretanto, para nossas viagens, percebemos ser algo pouco útil. Os amortecedores são muito importantes para o controle da bicicleta conforme ganhamos velocidade, além de oferecer algum conforto. Em nosso caso, a carga inibe grandes velocidades mesmo em descidas fortes, pois temos que preservar nossos equipamentos vitais para nossa sobrevivência. Por outro lado, a velocidade é a maior causadora de acidentes graves e nas regiões desoladas por onde viajamos preferimos evitar grandes velocidades para diminuir as possibilidades de acidentes.

Sendo assim, desde 2011, paramos de utilizar amortecedores em nossas bicicletas de viagem e com isso economizamos até dois quilos de peso em cada bicicleta, o que nos beneficia na hora de transporta-la em aeroportos, no alto de ônibus ou mesmo no dia a dia, a cada vez que temos que carregar a bicicleta nas costas para atravessar um rio ou mesmo para subir as escadas de um hotel ou pousada.

As bicicletas de montanha colocam o ciclista numa postura em que ele possa olhar para o chão, que presumivelmente pode estar cheio de obstáculos. Ao contrário, o cicloturista geralmente prefere olhar para o horizonte e apreciar a região que foi visitar. Por isso, aproveitamos o garfo novo para mudar radicalmente a postura do pedalar.

Os garfos, quando saem de fábrica, possuem a espiga bem longa para poder se adaptar a qualquer modelo de bicicleta (veja na foto). Em nosso caso, instalamos espaçadores para aproveitarmos toda a espiga, aumentando a altura do guidão. Essa mesma alteração pode ser obtida com um guidão curvo ou uma mesa com maior ângulo de inclinação. Para nós bastou aproveitar a espiga.

Mas Olinto, vocês não têm medo de quebrar quando forçam em uma subida?

Bem, é importante lembrar que toda a pressão sofrida por um garfo é transferida para o ponto onde ela entra em contato com o quadro, ou seja, os rolamentos do guidão. Se compararmos a força recebida pelos impactos da roda com o chão e a força que imprimo no guião em uma subida, veremos que esta última é muito menor, ainda mais se tomarmos em conta todo o peso na bicicleta e o aumento da força exercida através do “momento” existente na distância entre os rolamentos e a ponta da roda que encosta no solo.

Sendo assim, posso dizer que não temos medo de quebrar, a não ser que o material do garfo seja ruim, mas isso não terá relação com a customização em si.

Ao final do treinamento substituímos os pneus de montanha por outros com maior quantidade de borracha no ponto de contato com o solo, pensando na longevidade do pneu para a viagem. © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Freio

Peças de reposição para freios V-brake são as mais fáceis de encontrar e/ou adaptar, mas este equipamento está indo para o limbo, assim como os aros 26.

Já provamos os discos com acionamento mecânico e nos pareceram bons, mas aconselhamos evitar os discos hidráulicos. Por sorte a Pitch possui um modelo com freio a disco mecânico que é até mais barato.

Por todas estas características percebemos que a Pitch seria a melhor bicicleta para nós. Quando vimos seu valor de venda ficamos felizes, pois podemos afirmar que esta bicicleta tem um excelente custo benefício.

Podemos encontrar peças de reposição em qualquer lugar do mundo. Será?!
Local da foto: Yazd, interior do Irã. © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Pronto! Queríamos uma Pitch!

Mas, nem tudo acontece como o programado. Na hora da entrega, percebemos que as bicicletas vieram com freios hidráulicos.

Ligamos para a Marina e comentamos sobre o equívoco. Ela lamentou e disse que não dava para trocar. Entretanto tínhamos permissão de fazer qualquer alteração ou customização que achássemos necessária.

Costumamos preparar nossas bicicletas em Bauru-SP, na De-Bike, e confirmei com nosso amigo “De” que todas as alterações seriam possíveis.

O disco mecânico já estava fora da caixa e o hidráulico já havia sido retirado da bicicleta quando o Sr. Arnaldo, o experiente mecânico do De, comentou:

Vocês têm certeza que desejam fazer esta alteração? Por quê?

O cicloturista geralmente prefere olhar para o horizonte e apreciar a região que foi visitar. Local da foto: Cânion do Rio Aras, próximo a Karakurt, Turquia. © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Bem, esse é o típico momento em que um cicloturista deve saber bem o que está fazendo para não cair em ideologia equivocada. O pensamento comum dos ciclistas e mecânicos do nosso país está intrinsicamente influenciado pela prática do mountain bike e muitas vezes estes padrões não são os melhores para um cicloturista. Será que deveríamos utilizar o equipamento “melhor” e mais moderno, mesmo sem necessidade, e assumir o risco de não encontrar peças de reposição em um país como o Irã, que está sob embargo econômico americano?

O Sr. Arnaldo, além de ótimo mecânico, é um grande ciclista, e não seria qualquer argumento que faria ele e o De compreenderem nossos motivos, e aí começamos a discutir profundamente sobre o assunto.

Primeiramente nós não precisamos do acréscimo de potência e precisão que o hidráulico nos proporciona, tendo em vista que não desenvolvemos grande velocidade. Por outro lado, não desejamos os riscos que o sistema nos impõe. Imagine se o óleo vaza quando trocamos o pneu ou transportamos a bicicleta no avião ou ônibus? Isso sem falar no cabo, que pode arrebentar no transporte ou simplesmente dobrar quando a bicicleta cai depois de um corriqueiro vendaval. Para nós estes são motivos mais que suficientes para não aderir à nova tecnologia.

Apesar de nos respeitarem profundamente, o Sr. Arnaldo e o De contra argumentaram:

Os freios originais desta bicicleta já são modernos, o óleo não vaza, nem se ficar freando forte sem o disco, e as pastilhas voltam com facilidade.

Bicicleta Specialized Pitch preparada para nossa viagem pelo Oriente Médio. © Rafaela Asprino e Antônio Olinto

Os acabamentos finais dos cabos são muito fortes, não irão escapar simplesmente. O cabo tem muita flexibilidade, mesmo que dobre em 90 graus, ele volta à posição normal, veja. Estes problemas que comentam são dos primeiros freios a disco, vocês podem ir tranquilos.

Nossa tendência era rejeitar os argumentos, pois não temos necessidade de arriscar com o hidráulico, mas havia mais um fator importante que acreditamos que o cicloturista deve levar em conta na hora de decidir.

O freio a cabo que iria substituir o hidráulico não era Shimano. Apesar de ser tão bom quanto, a chance de encontrar peças Shimano em todo mundo é muito maior, pois esta fábrica tem quase o monopólio mundial no setor.

Resolvemos aceitar os argumentos que nossos amigos nos demostraram e testar os freios hidráulicos nesta viagem.

Então Olinto, como eles se portaram? Valeu a decisão? O que aconselham?
Bem, esta e outras questões pretendemos comentar na sequência de artigos que vamos publicar sobre nossa viagem pela Turquia e Irã. Fique ligado para não perder as próximas.