O casal português Tiago e Daniela está na estrada desde julho de 2015. Saindo de Edmonton, no Canadá, eles pretendem pedalar por toda a América e chegar à Argentina em aproximadamente dois anos. O objetivo: desfrutar da vida e da viagem a cada dia, conhecendo diferentes países, pessoas e culturas, além de despertar o interesse e vontade de outras pessoas para esta forma de viajar.

Eles deixaram a casa, venderam a mobília, deram uma pausa no trabalho e partiram para a primeira grande viagem de bicicleta: sair do Canadá rumo à Argentina, atravessando toda a América até meados de 2017. Tiago, “português há 36 anos”, como se apresentou, nascido em Torres Vedras, filho do meio de uma família de três, diz que é a andar de bicicleta que se sente livre. Foi o padrasto que o ensinou enquanto criança, e mais tarde durante o serviço militar, retomou a utilização frequente da bicicleta e o gosto pelo “BTT”, ou bike para todo o terreno, como chamam em Portugal a mountain bike.

Foi com ele que Daniela descobriu como é especial e divertido o cicloturismo. Nascida no interior de Portugal, na cidade de Castelo Branco, Daniela se diz otimista e sonhadora. Viajar sempre esteve nos seus planos. Lia, com inveja e deleite, as crônicas e livros de outros viajantes que andavam pelo mundo. Estudou psicologia e é apaixonada pelo desenvolvimento pessoal. Antes da viagem, trabalhava em Consultoria de Recursos Humanos e Formação Comportamental, como profissional independente. Gosta de conhecer pessoas e lugares, integrando a diferença e aprendendo com ela.

Tiago e Daniela, os personagens desta viagem, trazem através desta entrevista um olhar sobre a experiência que estão tendo. Acompanhe.

Como vocês se conheceram e como a bicicleta se tornou um elo em comum a vocês?

Conhecemo-nos através de amigos comuns. O desporto e a atividade física já faziam parte da rotina do Tiago. Ele fazia BTT e pouco depois de estarmos juntos começou a utilizar a bicicleta para ir ao trabalho. Já eu (Daniela) levava uma vida bem sedentária. A ideia de andar de bicicleta só me cativou quando começamos a sonhar com esta viagem, pois possibilitava a união de dois interesses num projeto comum.

Por que viajar pela América?

Por que não? Já tínhamos ido ao México, Argentina e Uruguai. Gostamos bastante. Temos também muita curiosidade por países como a Colômbia, Bolívia e Perú. Tivemos ainda a oportunidade de conhecer três portugueses que fizeram uma viagem semelhante à nossa, um casal (a Sara e o Pedro) e um viajante “solo” (o Idílio). Eles e os seus relatos de viagem foram fortes influências.

Lago Louise, no Canadá. © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

E por que de bicicleta?

Principalmente por nos permitir unir estes dois interesses, viajar e andar de bicicleta. Depois, porque é uma forma de viajar ecológica, econômica e divertida. A bicicleta, carregada com toda a bagagem, chama a atenção das pessoas de uma forma muito positiva. Surpreende e gera curiosidade. Expõe-nos muito e é um excelente pretexto para iniciar uma conversa ou contato. É um meio de transporte interessante e normalmente quem viaja assim é visto como amigável e tranquilo, o que ajuda a criar proximidade pelos lugares por onde passamos.

Muitas pessoas ficam no empasse: adorariam fazer uma viagem longa de bike, mas ao mesmo tempo, consideram não poder abrir mão do trabalho ou de outros compromissos para se ausentar durante meses ou anos. Como foi esse processo pra vocês? Que dicas vocês dariam para aqueles que estão neste dilema?

Acreditamos que é uma decisão muito pessoal e que depende das motivações e prioridades de cada um. Para mim (Daniela), ter uma experiência como esta, que envolva viajar durante um longo período de tempo por vários países, sempre foi um objetivo de vida. Seria algo que iria fazer, em alguma altura. Quanto ao trabalho, entendo que é importante na vida de cada um. Eu gosto muito do que fazia profissionalmente e, felizmente, tinha um trabalho estável. No entanto, sinto que o lado profissional é apenas uma das áreas da vida onde tenho metas que quero atingir. Uma vida plena vai para além do trabalho. Neste momento consegui ter reunidas poupanças para avançar com o plano da viagem e não tinha outros compromissos que me “prendessem”, por isso estava no momento de dar o primeiro passo e viver esta experiência.

O que me (Tiago) levou a avançar com o plano da viagem foi pensar nos benefícios que me traria. O preenchimento e o enriquecimento pessoal pesaram mais do que a estabilidade e o conforto que um trabalho garantido me permite ter. Passou por avaliar o que, neste momento, era para mim uma prioridade e senti que conhecer outros lugares e pessoas iria contribuir para crescer no lado pessoal e profissional. Também pesou na minha decisão o fato de não ter outros compromissos, como por exemplo, filhos. Por isso, era importante aproveitar. No meu caso, pedi uma licença sem vencimento, de dois anos, no trabalho, e isso permite-me retomar à atividade profissional quando regressar.

No que diz respeito a dicas para quem esteja no impasse, sugerimos que ponderem prioridades, que se imaginem no futuro a olhar para as suas vidas como se elas já tivessem acontecido e que procurem respostas para questões como estas: “o que gostariam de ter feito?; o que teria sido mais importante?”.

Sentimos que também ajuda falar com pessoas que tenham tido vivências semelhantes. Às vezes, aquilo que consideramos que é um problema já foi solucionado por outros de formas muito criativas. Por exemplo, já conhecemos pessoas que viajam quase sem dinheiro, já vimos relatos de famílias que viajam com os seus filhos e que adoram a experiência… Consideramos que é mesmo uma questão de dar o primeiro passo. Não é uma decisão que se tome “de ânimo leve”, porque dá medo e levanta muitas dúvidas. Mas o desafio é mesmo esse, aceitar que o medo e as dúvidas serão eternos companheiros de viagem e que, apesar de existirem, não precisam nos impedir de partir.

Swan Lake, lago em Montana, EUA © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

Vocês optaram por uma viagem econômica. O sistema de warmshowers está funcionando bem pra vocês? Que outras iniciativas vocês estão utilizando para tornar a viagem mais barata?

Os maiores gastos da viagem têm sido em alojamento e comida.

Quanto ao alojamento, até agora ficamos cerca de 10% das noites em casa de pessoas que pertencem à rede warmshowers. Ajuda a reduzir a despesa, uma vez que o alojamento é gratuito, e é uma excelente forma de conhecer pessoas locais que têm em comum o interesse pela bicicleta.

A possibilidade de acampar também nos ajuda a conseguir gastar menos. Temos a nossa barraca e material de campismo e já acampamos em parques, postos de gasolina, terrenos particulares ou campismo selvagem. À exceção de parques de campismo pagos, todas as outras opções são gratuitas.

Também já dormirmos numa igreja e num ginásio. Falamos com as pessoas dos lugares onde chegamos e procuramos perceber quem poderia nos indicar um lugar para ficar gratuitamente. Pode-se procurar secretarias de turismo, serviços sociais, igrejas ou bombeiros, por exemplo. Basta superar alguma timidez. Normalmente, a resposta e o retorno são muito positivos.

Quando ficamos em hotéis, procuramos sempre fazer uma pesquisa prévia, pela internet ou na localidade onde queremos pernoitar. Procuramos uma opção que esteja dentro do nosso orçamento e, por vezes, pechinchamos o preço.

Quanto à comida, no Canadá e nos Estados Unidos, saía bastante caro comer em restaurantes, por isso quase sempre cozinhávamos (temos o nosso fogão de campismo e equipamento de cozinha) ou improvisávamos refeições com compras no supermercado. Já no México, o preço da comida é mais econômico e isso permite-nos alternar mais vezes entre as compras no supermercado e as idas a restaurantes.

Mesmo assim, é preciso ter uma reserva considerável para ficar dois anos na estrada, não é? Qual o gasto diário (ou mensal) médio?

Até este aspecto depende muito do tipo de viajante que cada pessoa é e do que quer para a sua viagem. Como dissemos, já conhecemos pessoas que viajam com orçamentos muito reduzidos.

No nosso caso, gastamos mais do que gostaríamos no Canadá e nos Estados Unidos. No México, já estamos mais dentro do orçamento que havíamos planeado. Para dar uma ideia mais concreta, no Canadá gastamos cerca de € 30 por dia, por pessoa; nos Estados Unidos, aproximadamente € 25 por dia, por pessoa; e no México estamos com um gasto diário de € 14 por dia, por pessoa.

À medida que a viagem avança vamos aprendendo a tomar melhores decisões relativamente aos gastos e a evitar algumas despesas impulsivas que fazíamos mais no início.

Para além do gasto durante a viagem é importante ter em conta o investimento feito em material e equipamento, bem como na compra das viagens de avião (se for o caso). Para quem planeja fazer uma viagem deste tipo, consideramos que o investimento em equipamento (bicicletas, alforjes etc) deve ser feito progressivamente, enquanto ainda se está a trabalhar e a receber salário, se for possível.

Deserto do Arizona, EUA. © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

Nestes primeiros meses, a experiência está sendo aquilo que esperavam? O que se confirmou e o que foi mais inesperado até aqui?

A experiência está nos surpreendendo positivamente. Confirmamos que viajar de bicicleta é, de fato, muito especial. De um modo geral, destacamos a generosidade das pessoas ao longo do caminho. Já aconteceu de sermos convidados para jantar e pernoitar na casa de uma senhora que nos abordou na estrada, sem nos conhecer, simplesmente porque ela também já tinha feito uma viagem de bicicleta há 20 anos e se identificou conosco. Já pedimos a pessoas para acampar no seu terreno e elas nos convidaram para dormir dentro de casa e ofereceram refeições. Já nos deram dinheiro na rua, no México, quando procurávamos um alojamento mais barato do que aqueles que haviam naquela localidade. Com frequência somos abordados e nos oferecem diversos tipos de ajuda! É fantástico sentir isso na estrada. São coisas que acontecem quando menos esperamos, uma espécie de “milagres” que tornam a viagem ainda mais surpreendente.

Vocês têm uma estimativa de peso da bagagem? Há, entre os utensílios que vocês levam, algo que seja inusitado ou curioso? Sentiram falta de algo, até agora?

Eu (Daniela) transporto aproximadamente 50 kg, considerando a bicicleta e a bagagem, ou seja, tanto quanto eu própria peso.

Eu (Tiago) transporto cerca de 65 kg, peso da bicicleta e da bagagem. O peso varia ligeiramente conforme a quantidade de comida que transporto para o caminho.

O que pode eventualmente ser curioso na nossa bagagem são pequenas almofadas, como aquelas que oferecem nos aviões de longa distância, para dormir. E também usamos luvas de borracha para lavar a louça. Parece algo estranho, mas ajudam muito, sobretudo quando está muito frio ou a água que está gelada!

Não sentimos falta de nada até agora. Pelo contrário, já oferecemos e doamos algumas das coisas que trazíamos e que não eram necessárias: um cadeado, um cabo e também roupa.

Receção calorosa em Chiuahua, México. © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

Quais têm sido os principais desafios na estrada, até agora?

No início, demoramos algum tempo até encontrar o nosso ritmo de viagem. Como é uma viagem que exige bastante esforço físico, tivemos de aprender a “ouvir o corpo” e a respeitar as nossas diferenças de preparação física. Fomos testando e conversando muito sobre as necessidades e expetativas de ambos até encontrarmos um equilíbrio entre os dias pedalados e os dias de descanso.

Há dias bastante cansativos, com muitas subidas ou com frio, chuva e vento. Para fazer um planejamento mais adequado ao nosso ritmo de viagem procuramos pesquisar sobre a altimetria da estrada, no site map my ride (www.mapmyride.com), e verificar subidas e descidas para planejar as distâncias diárias. Também evitamos andar na estrada nos dias em que há previsão de mau tempo.

Outro desafio que identificamos são as estradas muito movimentadas e sem acostamento. Pegamos algumas, sobretudo no México, e são trechos de viagem mais estressantes.

Dos países e comunidades que já visitaram, qual lhe chamou mais a atenção? Por quê?

Dos três países que já visitamos nesta viagem consideramos que todos têm muito de especial, mas talvez o México tenha sido o que mais nos surpreendeu, sobretudo pelo carinho e proximidade das pessoas.

Parque Nacional de Grand Teton, Wyoming, EUA. © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

E o Brasil, está nos planos?

Quando iniciamos a viagem, tínhamos delineado um trajeto que passaria sobretudo por atravessar o continente pela costa do Oceano Pacífico. Ou seja, o Brasil não estava na rota. No entanto, o plano mudou todo e estamos a atravessar a América do Norte pelo interior dos países. Quando chegarmos à América do Sul vamos ver o que acontece. Até aqui, percebemos que o plano é apenas um esboço, pois o que mais nos tem guiado nas nossas decisões são as conversas com as pessoas locais. Com elas percebemos o que é bonito, mais seguro, o que vale a pena ver e o que também se adapta bem à viagem de bicicleta.

Para você, Daniela, quais são os pontos mais favoráveis e os menos favoráveis para uma mulher, numa viagem mais longa assim?

O que tenho sentido ao longo do caminho é que uma mulher cria empatia mais facilmente e desperta abertura nas pessoas com quem interagimos na viagem. Não sei explicar muito bem isto mas talvez, socialmente, não sejamos consideradas tão “ameaçadoras” para alguém que não nos conhece e haverá mais disponibilidade para ajudar e dar apoio.

Relativamente a pontos menos favoráveis, diria que a logística da ida à casa de banho (banheiro) durante o caminho é mais complicada para as mulheres do que para os homens. À parte este aspecto, não senti outros pontos menos favoráveis. Já passamos por alguns lugares em que se sente que a sociedade ainda é bastante machista, mas no que diz respeito à minha experiência direta enquanto viajante, isso não representou nenhum tipo de problema.

Campismo no deserto do Arizona, EUA. © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

E como têm sido pedalar a dois, para vocês? Quais os benefícios para o relacionamento?

O benefício mais evidente é a possibilidade de compartilhar a viagem com alguém de quem gostamos muito e com quem nos preocupamos. É um desafio que nos aproxima, contamos muito um com o outro e reforçamos os laços de confiança que já existiam.

É também um desafio de autoconhecimento e de conhecimento mútuo. Exige muita comunicação franca e respeito pelas necessidades de cada um, que nem sempre são necessidades comuns. Apesar de estarmos quase sempre juntos, é fundamental que cada um tenha o seu espaço e sinta que pode estar consigo mesmo quando sente essa necessidade.

Para finalizar, poderiam dar algumas dicas para quem está pensando em cicloviajar pela América?

Primeiro de tudo, diríamos o que disseram a nós: “vocês têm de fazer a viagem!”

Diríamos ainda que dá muito medo e levanta muitas dúvidas partir para um projeto deste gênero, mas a experiência é muito gratificante e enriquecedora.

Sugerimos que cada pessoa adapte a viagem às suas necessidades e ao seu estilo. Se não dá para viajar durante um ano ou dois, pode ser durante menos tempo. O importante é ser flexível e não inventar justificativas para não partir. Hoje em dia, viajar é muito fácil. A internet ajuda muito, a planejar, a manter o contato com a família, a trabalhar à distância (se for o caso)…

Há também algumas questões funcionais que podem ser determinantes antes de iniciar a viagem, como por exemplo: fazer um seguro de viagem e saúde, verificar as condições para a obtenção de visto nos países que pretende visitar, investir em material resistente e durável (mais vale investir no início do que gastar mais dinheiro em reparações pelo caminho), falar com outros viajantes que já passaram pela mesma experiência e criar um perfil no warmshowers.org para receber viajantes em casa.

Por último, lembrar a cada pessoa que o mais importante é desfrutar e se divertir. Só assim a viagem faz sentido!

Parque Nacional de Canyonlands, Utah, EUA. © Arquivo Pessoal / Thiago e Daniela

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