Uma tarde ensolarada como outras. Um brilho especial como raros. Vitor subiu na garupa da bike. Tantas repetições e fazia o movimento sozinho. Hora da descida final, os últimos dezoito quilômetros até San Martin de Los Andes. Lili tomou a dianteira. Em seguida, erámos os três. Erámos um. Vieram o vento, a euforia, o Lago Lácar, a vibração. Éramos infinitos.

© Renato Perim

Dizem que a primeira pedalada é a mais importante de uma cicloviagem. Essa, em especial, brotou de uma prosa na cozinha. Ali estávamos com um hóspede especial, Ivan, argentino que seguia com sua bicicleta em direção à Índia. O desconhecido chegou para uma noite e, um mês depois, já nos chamávamos de irmão. Entre várias histórias, perrengues e encontros, contava sobre os encantos de uma tal Rota dos Sete Lagos. Antes do último pão de queijo, estava selado nosso próximo destino.

A Rota dos Sete Lagos começa oficialmente em Villa La Angostura, percorrendo 110 km até San Martin de Los Andes na Patagônia Argentina. Para quem decide partir de Bariloche, como nós, a distância é de 200 km.

Após tantas experiências pelas serras de Minas e uma ciclotravessura pela Holanda e Bélgica, esta era a última oportunidade de carregar nosso pequeno, com seis anos, na garupa quilômetros a fio. O tamanho do trajeto e a decisão de pedalar uma distância menor por dia tornavam a ideia mais prazerosa. Como praticamente não há estadias no caminho, programamos acampar nos pernoites. Com isso, ganhávamos flexibilidade e, inevitavelmente, peso extra. A tralha para acampamento e mantimentos, somada às roupas, trailer e o corpanzil do garupeiro, bateram nos 60 quilos. Sem esquecer da bola de futebol e o kit para slime.

© Renato Perim
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Início de janeiro, céu azul, bicicletas a postos, tudo pronto para o bucólico passeio pelo jardim da Cordilheiras dos Andes. E assim foi no primeiro dia. Com um forte vento contrário, seguimos 55km de Bariloche ao camping Los Cipreses. Antes da noite cair, um banho a quatro graus no glacial lago Nahuel Huapi, alguns toques de bola e o primeiro encontro com Javier, Silvia e Blanca, trio argentino que tantas outras vezes encontraríamos na estrada. A noite fria na barraca foi o prenúncio. No dia seguinte, 35km e chegamos em Villa La Angostura. Até então, o conto de fadas da família feliz e seus piqueniques encantados.

Só que… o tempo virou. Já na saída do vilarejo, o chumbo no horizonte foi o cartão de visitas. Algumas pedaladas depois, a chuva. Outras tantas, o frio. Intenso. De novo o elemento desafio nas nossas cicloviagens. Obra do acaso. Para Lili, da minha desorganização. Ainda hei de comandar o clima. Na garupa, um vulto embrulhado em capas de chuvas. Sob a copa da árvore, três cappuccinos. O desorganizado tinha um fogareiro. E chocolate. Vitor retribuía com sorrisos e bom humor. Lili contribuía com a prudência: era hora de parar. Quilômetros à frente, o destino lhe atendeu. A fazendinha tinha uma choupana. Com frestas, lareira e um cordeiro assado pelo camponês que nos acolheu.

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O dia seguinte acordou gélido. Com a trégua da chuva, decidimos seguir. Subíamos uma ladeira e no alto da montanha, algo começou a cair do céu. Um floco na luva da bicicleta e uma exclamação: neve! Vários flocos e tantos outros gritos. Lembro-me de euforia similar, pueril, nos encontros anuais com o mar. Coisa de mineiro. De volta à Patagônia, o topo da montanha logo se vestiu de branco. Horas depois, já no Camping Sete Lagos, de novo o trio argentino. E outros cicloturistas que se refugiavam do frio no entorno daquela fogueira. O maestro Javier comandava a orquestra de fogareiros.

Deleite maior à companhia da natureza ao redor era observar a interação do Vitor com outros cicloviajantes. Incansável nas brincadeiras, chutava uma bola com alguém à beira do lago, enquanto o pai, com um prato de lentilhas na mão, simplesmente o admirava. De todas, a fotografia favorita. Bem guardada na memória.

Os dois dias seguintes, apesar do zero grau na barraca, foram de céu azul e uma pedalada maravilhosa. Serpenteando lagos, corredeiras e montanhas nevadas, avançamos natureza adentro. Quase intuitivamente, antes dos dezoito quilômetros descendentes até San Martin, num alto de serra, atendi ao aceno do silêncio. Uma pausa antes dos estímulos, ruídos e redes da cidade.

Ao lado da pequena ponte, encostamos as bicicletas. Lili estirou o corpo no solo quente. Dádiva pela noite fria. Uma placa informava que sob nossos pés corria o Arroyo Partido. Um riacho qualquer, não fosse pelo detalhe de, justamente ali, a corredeira se dividir em dois cursos d’água que seguiam para oceanos distintos. Um lado desaguaria no Pacífico, outro no Atlântico. Simbolismos inundaram-me. Refletia sobre distanciamentos involuntários, abruptos destinos e, enquanto formulava uma metáfora para o Vitor, fui interpelado:

– Papai, as águas do Pacífico e Atlântico um dia se encontram?

Enquanto anuía com cabeça, ficamos os dois ali, em uníssono, fitando aquelas águas. Trazido pelo som da corredeira, o último silêncio.

© Renato Perim

Não sei o que nosso aventureiro mirim levará dessa jornada. Na dúvida, salvei a notícia jornalística da inadvertida massa polar que trouxe neve para a região em pleno janeiro. O idoso na praça de San Martin disse nunca ter presenciado algo parecido. Talvez, adolescente, Vitor se divirta em saber que a desbravou na garupa dos pais. Talvez desconverse e novamente indague sobre encontros. Tais quais as corredeiras que, defronte a nós, se dividiram no Arroyo Partido e um dia, sob uma esplêndida lua cheia, se encontrarão em algum estreito deste planeta.

Fotos Renato Perim

© Renato Perim
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