A pedalada por Moçambique foi uma das mais inspiradoras que tive em toda a vida, sobretudo graças às pessoas com as quais tive a sorte de encontrar pelo caminho. A força de um moçambicano é como um baobá: cresce na adversidade, floresce onde nada se espera. Como a árvore africana, não é só que eles crescem, como se mostram imponentes, tão altivos que a gente até esquece da adversidade da qual eles brotam.

Ainda que o país seja de tirar o fôlego, essa sequer é a melhor parte. Não há nada melhor em Moçambique do que o moçambicano. Apresento-lhes três personagens, três gerações que mostram em poucas palavras o que eu demoraria um livro para tentar explicar.

© Ricardo Martins

Kulele – Dançando no caos

Esta é Kulele. Tem sete anos, todos os dias caminha três horas diárias para buscar água para a família e voltar para casa. Meu termômetro marca 40 graus, o sol castiga, enquanto ela caminha descalça no asfalto quente.

Chegando no poço, há de se bombear forte e manualmente para que a água encha os grandes baldes. Todo mundo se ajuda, cada um reveza e enche o próprio balde e o dos colegas, e quando um cansa o outro assume. Chegam juntos, saem juntos, se ajudam, como sobreviventes.

© Ricardo Martins

No retorno para casa, Kulele caminha relaxadamente, mal parecendo que carrega um balde quase do tamanho de seu tronco, ou que fará aquilo por pelo menos mais 90 minutos. Kulele dança enquanto caminha. Asfalto quente, 40 graus, balde pesado, apenas sete anos, e Kulele dança enquanto caminha. Não sei mais o que pensar, não sei mais o que sentir. A África parece aquelas flores lindas que teimam em florescer depois que se devasta toda uma floresta. Haja o que houver, ainda que sob as condições mais severas, há uma África que dança, floresce, sobrevive e ensina.

Kulele dança em meio ao caos. Quando no caos se nasce e vive, valentia e resistência são pleonasmos da existência.

© Ricardo Martins

Benito – A humanidade na adversidade

Certo dia, calculei meio mal a distância entre povoados, o que me levou a pedalar a última hora pela noite. Enquanto eu estava meio perdido, tentando achar ao menos uma pequena vila para descansar, um jovem veio de bicicleta e começou a conversar. Seu nome: Benito, e aí começa uma aula de humanidade e generosidade.

Benito foi conversando comigo em sua velha e enferrujada bicicleta, pedalando com dificuldade sobre as engrenagens já carcomidas, mas encontrou um amigo a pé e ainda o colocou na garupa. “Pobre não zanga, se ajuda”, me dizia ele enquanto pedalava com mais dificuldade ainda, com um sorriso inabalável. Seus dentes, muito brancos, contrastavam com a pele extremamente negra dos típicos bantos de Moçambique. Benito suava, franzia a testa, e sorria, como poucas vezes vi outros sorrirem em meio ao luxo.

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Ele me convidou para dormir em sua casa de palha, o que prontamente aceitei. Percebi que eu não tinha muita comida nos alforges para compartilhar, apenas uma lata de sardinha e 100 gramas de macarrão. Perguntei o que Benito comeria naquela noite, quando pela primeira vez ele parou de sorrir e olhou para baixo, parecendo envergonhado:

– Minha mãe não cozinhou nada hoje, mas tem farinha…

– Puxa, eu só tenho isso aqui de comida — mostrei meu macarrão e sardinha —, mas a gente pode comprar algo, que tal?

– Tá tudo fechado, mas guarda a sua comida que amanhã você vai ter muita subida. Eu como a farinha mesmo!  – Benito sorria, mais envergonhado do que feliz.

– Mas então a gente mistura a tua farinha com o meu macarrão com sardinha!  – eu disse, tentando parecer empolgado com o que seguramente seria pouca comida para ele e para mim.

Terminamos a janta. Se eu permanecia com fome, imagina o Benito. Imagina isso todo dia…

© Ricardo Martins
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Na manhã seguinte, ele acordou uma hora mais cedo do que eu, para buscar água limpa pra eu beber durante o dia e tomar banho. Queria recusar ao menos o banho e poupar a escassa água da família que tão bem me acolheu, mas percebi a felicidade do menino ao me proporcionar algo tão básico de forma tão difícil. Aceitei, para em seguida sair para comprar café da manhã.

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Comprei uma dúzia de pães, frutas, leite e ovos, e fizemos um super omelete com frutas de sobremesa. Benito disse que era muita comida só para a gente, e sua mãe então saiu pra chamar mais gente para comer conosco, aí vieram mais três adultos e duas crianças. Sem dizer uma palavra, Benito me mostrou que mais valem oito pessoas satisfeitas do que apenas duas cheias enquanto ao redor outros tem fome. Na despedida, Benito foi colher tangerinas frescas do pé de sua casa, para eu levar no caminho. Demos um no outro um abraço emocionado, sabendo que aquele dia marcaria aos dois de forma permanente.

Na hora do almoço, parei para comer as tangerinas que recebi, quando vi ao longe uma criança olhando em silêncio para as minhas frutas. Chamei ela para sentar comigo no chão marrom e seco onde eu estava, enquanto juntos comemos cada um duas tangerinas. Passei adiante a comida e o ensinamento que recebi. Espero que outros com o tempo façam o mesmo ao saber que no mundo há gente como Benito.

“Benito suava, franzia a testa, e sorria, como poucas vezes vi outros sorrirem em meio ao luxo.”

Seu Felipe – O homem sem pernas que me ensinou sobre velocidade

Passando por uma pequena cidade em Moçambique, o gancho do meu alforge soltou da base. ‘Droga’, pensei, não vou encontrar onde consertar isso… Ao fundo de uma confusão de pessoas emaranhadas, vi o mercado local, cheio de becos, tendas mil para coisas mil, desde barbeiro até comida e eletricista. Perfeito, havia esperança.

Ao fundo, avistei um senhor sem as duas pernas consertando uma bolsa. Seu ajudante parecia ser surdo mudo, pela forma que se comunicava. A cena me provocou um certo choque, mas o senhor sem as pernas abriu um sorriso tão lindo para me receber que esqueci a razão para qualquer estranhamento. Senti vergonha de ter sentido vergonha. O senhor viu meu alforge arrebentado e pediu para ver.

– Qual é seu nome?

– Ricardo, e o do senhor?

– Felipe. Não tenho o rebite pra essa bolsa, mas dá para costurar e reforçar.

– Será que vai funcionar?

– Melhor que funcione, você não tem outra opção, né!

“A África parece aquelas flores lindas que teimam em florescer depois que se devasta toda uma floresta. Haja o que houver, ainda que sob as condições mais severas, há uma África que dança, floresce, sobrevive e ensina.”

Ao dizer isso, Seu Felipe riu gostosamente. Explicou em gestos para o ajudante o que era pra ser feito, e depois começamos um papo levíssimo. Me senti tão bem que já até havia esquecido do infortúnio que me havia trazido até ali. Seu Felipe me mostrou o alforge consertado, um belíssimo trabalho, com um cuidado e detalhes impressionantes. Perguntei quanto sairia o serviço.

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– Precisa pagar não. O material que usei era sobra de outra bolsa! – disse Seu Felipe, ainda sorrindo.

Não soube o que responder. Tive vontade de chorar, vejam que bobo. Tirei uma foto e me despedi de Seu Felipe e seu ajudante. Comprei sanduíches e um suco, e depois voltei para comermos juntos. Seu Felipe agradeceu, comia com a mesma felicidade que tinha pra consertar a minha bolsa e me receber. Comia com a mesma felicidade com que vivia.

Seu Felipe conserta bolsas, conserta o mundo, e faz isso com simplicidade. Moçambique se revela mais bonito a cada quilômetro e a cada pessoa como ele.

“A força de um moçambicano é como um baobá: cresce na adversidade, floresce onde nada se espera…tão altivos que a gente até esquece da adversidade da qual eles brotam.”