O projeto Pedala Queimados, na região metropolitana do Rio de Janeiro, está usando a bicicleta para promover equidade social localmente. Enquanto a cidade foi ranqueada pelo IPEA como a mais violenta do país em 2018, o projeto usa bicicletas para reverter esse jogo. Mais do que isso, agora há também bicicletas de bambu.

© Ricardo Martins

Carlos Greenbike é o responsável pelo projeto. Nascido e criado em Queimados, ele fornece uma visão mais profunda ao ranking do IPEA. “Somos a cidade mais violentada, antes de ser a mais violenta”.  Mais do que riqueza ou pobreza de maneira isolada, a desigualdade social pode ser a maior geradora de violência de uma cidade. Trata-se de democratizar o acesso à educação, lazer, saneamento, cultura, emprego e renda; o que resulta em um aumento de segurança e bem-estar. Por uma “cidade violentada”, Carlos se refere a toda uma cadeia sucessiva e histórica que resulta na violência. A cidade mais violenta seria, portanto, um sintoma de um sistema mais complexo. Um breve retrospecto pode explicar parte do panorama.

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Desde Queimados até as zonas centrais do Rio de Janeiro, onde estão a maioria das opções de emprego, é bastante comum demorar até oito horas no deslocamento ida e volta ao local de trabalho. Oito horas no transporte, nove no trabalho (na melhor das hipóteses), com sorte resta o tempo do sono e nada mais para completar as 24 horas. Ao invés de fazer todo esse trajeto por um salário pouco competitivo, há uma significativa parcela na região que simplesmente opta por não trabalhar e encontrar meios locais de subsistência. Além de emprego, as opções de lazer e oportunidades em geral estão também nas zonas centrais da capital carioca. O efeito da geração “Nem-Nem, os que nem trabalham e nem estudam” é um dos sintomas desse tipo de conjuntura, entre diversas outras questões.

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Um objetivo em poucas palavras: mudar o CEP da oportunidade através da bicicleta. Atualmente, não só as pessoas de Queimados encontram oportunidades no projeto de Carlos, como pessoas da capital se deslocam para os eventos do Pedala Queimados na região. De uma minoria entre os círculos privilegiados cariocas, Queimados agora abre os braços a quem vem de toda a região metropolitana e do Rio de Janeiro também. Se era longe ir até as clássicas maravilhas turísticas cariocas, o projeto começou a organizar pedaladas periódicas para mostrar as atrações na própria região, com cada vez mais adeptos. Aos que precisam deslocar-se até a capital, o projeto está implantando um sistema compartilhado com bicicletas abandonadas recuperadas, conectando as residências com os transportes públicos de massa. Aos que não possuem ocupação, oferece oficinas de mecânica de bicicleta. Aos que querem se capacitar para algo completamente novo, foi oferecida uma imersão para construção de bicicletas de bambu. A lista é enorme. Carlos, que já há tempos caminhava sozinho e com propriedade na cena da mobilidade carioca, conquistou apoios e conseguiu aprovação via editais para o Pedala Queimados, sempre incansável.

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Mas “e o bambu?”, perguntava Silvio Santos à menina de ar travesso. Bem, para este ponto preciso deixar a modéstia ligeiramente de lado e explicar um pouco sobre o Projeto Roda Mundo, diretamente interligado ao Pedala Queimados. Como vocês sabem em minhas outras colunas aqui na revista, desde 2016 estou dando a volta ao mundo com minha bicicleta de bambu, já pela África, Europa e agora Ásia. Trabalhei alguns anos junto com o Carlos Greenbike na Secretaria de Meio Ambiente, fui testemunha de uma equipe incrível que transformou sua vida pouco a pouco, um caminho sem volta. A mim coube apenas o peteleco final rumo a um caminho iniciado por tanta gente e ele mesmo. Se eu havia antes pedalado toda a América do Sul, Carlos se deu conta de que nada o impedia de percorrer os 60 quilômetros que separam Queimados do centro carioca. Carlos usou a bicicleta para ganhar acesso à cidade, cidadania e cultura, e pouco a pouco replicou localmente esse modelo em sua cidade. Em 2018, voltei brevemente ao Brasil para apresentar o Roda Mundo no Velo-City, o maior evento do mundo de mobilidade por bicicleta, enquanto Carlos foi aprovado no edital da ONG Transporte Ativo para participar do evento também. Daí por diante, foi uma combinação explosiva, que deu protagonismo para Carlos no meio das pessoas mais influentes do Brasil e do mundo no cenário da mobilidade ativa. Carlos possui o carisma de um gênio, que usamos para conectá-lo com instituições estratégicas no governo, ONGs e sociedade civil. Nosso primeiro projeto em conjunto foi ousado: construir mais bicicletas de bambu, feitas pela própria comunidade e para a própria comunidade.

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O primeiro passo era envolver Klaus Volkmann, da Art Bike Bamboo, que construiu a bicicleta com a qual dou a volta ao mundo. A proposta era trazê-lo de Porto Alegre até Queimados, para capacitar os jovens para que eles mesmos pudessem construir suas próprias bicicletas de bambu. Além das bicicletas serem usadas no sistema compartilhado da cidade, seria uma nova fonte de emprego e renda numa região carente de ofertas laborais de alta qualificação. Klaus topou, enquanto no Velo-City Carlos ganhou um prêmio em dinheiro da Embaixada da Bicicleta da Holanda, assim como muitos parceiros em todo o país que toparam fazer o evento acontecer. Gratuitamente, para moradores de Queimados e outras regiões periféricas. Mais do que isso, foram selecionadas pessoas em diversas situações de exclusão de oportunidades, como membros de abrigos municipais, um ex-detento em liberdade condicional, donas de casa, jovens buscando a primeira especialização, indivíduos de setores marginalizados ou prejudicados no mercado de trabalho tradicional. O resultado foi impressionante.

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Experimente dar uma oportunidade a quem raramente a tem para ver o resultado. Os participantes agarraram a chance com energia impressionante. Chegavam antes, saíam depois, tiveram um desempenho acima da média dos cursos anteriores ministrados por Klaus. Havia a sensação de pertencimento do objeto criado, então a comunidade cuida quando é parte ativa do processo. Foi longe de ser algo como mera assistência externa a uma zona carente, pois Queimados mostrou-se capaz de fornecer condições, pessoas e material localmente. Há um centro de promoção cultural no centro da cidade, chamado Portal Queimados, que prontamente abrigou e forneceu a estrutura necessária para a realização do curso. Restaurantes locais, Secretaria de Educação, comerciantes, familiares, cada um entregou sua parte para fazer o curso acontecer, um protagonismo local emocionante. Veio junto uma equipe de voluntários do Rio de Janeiro, incansáveis e dedicados, que se doaram integralmente para que tudo acontecesse, sem eles tampouco o curso teria acontecido. Veja nas fotos o brilho nos olhos de todos os envolvidos na realização do curso.

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E o que vem depois? Os planos do Pedala Queimados são tão ousados quanto perfeitamente possíveis. Carlos agora transforma seus sonhos para Queimados em um plano regido por muitas cabeças, braços e pernas. Em junho de 2019, o Pedala Queimados se apresentará no Velo-City na Irlanda. Uma estrutura antes informal começa a ganhar formato participativo via ONG. Outras cidades na região querem replicar as ações do projeto, e empresas pouco a pouco se candidatam para somar-se futuramente. O Pedala Queimados de Carlos lidera uma nova onda que coloca a cidade no centro de ações positivas de diversos setores. Enfim, as metrópoles passam a procurar Queimados também.

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Aliás, nem sinal da cidade mais violenta do Brasil durante as ações do projeto, confirmando a teoria anterior de Carlos.