O CICLISMO ROBOCOP

O povo, materializado nas imagens dos ciclistas invisíveis, que todos nós enxergamos no nosso trânsito cotidiano, que na sua grande maioria utilizam a bicicleta como principal meio de locomoção e sem os equipamentos básicos de segurança, no simples ato de andar de bicicleta de forma espontânea, ocupa os espaços públicos e, a sociedade civil organizada (quando não se faz omissa) é promotora do crescimento da bicicleta como veiculo de transporte e lazer no Brasil. André Geraldo Soares, já em 2015, um dos organizadores do livro A Bicicleta no Brasil, construído com apoio da Aliança Bike, descreve.

Casal de idosos no Centro de Jequié – BA. @cicloolhar

[…] É nesse segmento – a sociedade civil organizada – que devemos reconhecer a causa principal pelo crescimento, ainda tímido, mas perceptível, da bicicleta como meio de transporte e lazer no Brasil contemporâneo. […] (SOARES, 2015, p. 07).

[…] Essa parcela do povo não só pratica a bicicleta, mas a adota como um símbolo de singeleza e de igualdade para nós alertar sobre os deletérios efeitos dos valores e hábitos elitistas – os quais consideram a bicicleta um símbolo de pobreza e de atraso. Não fosse a ação de ciclistas organizados, autodenominados ou não de cicloativistas, a bicicleta jamais teria ganhado visibilidade como alternativa ao caos generalizado do trânsito que, atravancando milhões cotidianamente e matando milhares anualmente, ainda inacreditavelmente se alastra nas médias e grandes cidades. Estas mesmas pessoas e coletivos civis têm influenciado a economia da bicicleta. Novos negócios surgiram em torno da bicicleta, e empresas, mesmo de ramos diversos, têm buscado aliar sua imagem a ela, inclusive apoiando explicitamente sua expansão […] (SOARES, ps. 07, 08).

A cicloativista Jil Bike coloca placas de papelão nas ruas de Jequié – Bahia, para exigir políticas públicas para o ciclismo local. @cicloolhar

Os grupos de ciclismos precisam assumir o papel coletivo, cidadão, do cicloativismo, exigindo localmente políticas públicas para quem anda de bicicleta, existe um profundo silêncio e omissão por parte dos grupos, na maioria das cidades brasileiras onde existem coletivos de ciclismo, uniformizados, temos ausência quase total de políticas públicas para o ciclismo. Em Jequié, interior baiano, onde vivo, pedalo, cidade de mais de 150 mil habitantes, poucos ciclistas exigem dos poderes públicos, enquanto os principais grupos de ciclismo estão preocupados com a estética futura do próximo uniforme, seguimos sem políticas públicas para o ciclismo local.

Se existem grupos de ciclismo organizados e a mobilização cidadã pró-ciclismo não acontece, podemos afirmar que estamos diante de falsos coletivos.      

A sociedade civil organizada (quanto ativa) é apontada como protagonista no estimulo ao uso da bicicleta no Brasil, são inúmeras organizações de norte a sul do país, além de ações individuais de ativistas, denominada de (cicloativismo), observamos o que descreve Soares.

[…] O cicloativismo é um sistema de ideias que reconhece e investe na atividade, no protagonismo, na participação política em favor da inclusão da bicicleta com segurança e conforto no sistema de mobilidade urbana. Seus adeptos não compõem um bloco uniforme, mas suas diferentes abordagens concepções, através de diversos canais de relacionamento e de debate. Contando com as facilidades da internet, cresce a quantidade de pessoas e organizações pró-bicicleta, o que pode ser sentido na evolução do quadro de associados da UCB – União de Ciclistas Brasileiros. […] (SOARES, 2015, p. 08).

06 ciclistas invisíveis, Centro, Jequié – Bahia. @cicloolhar

Uma emissora de rádio local e um grupo feminino de ciclismo organizaram um passeio ciclístico em Jequié, o locutor posicionado em cima de um carro de som, animava os ciclistas presentes, na locução ele se reportava apenas aos ciclistas que estavam uniformizados (ciclistas de grupos), sendo que a maioria dos ciclistas presentes no passeio, eram ciclistas invisíveis, aqueles(as) que eu e você vemos no trânsito todos os dias, quando estamos pedalando ou dirigindo, eles(as) não utilizam luvas, estão sem capacete, sem sinalizadores e possuem bicicletas básicas.

O exemplo descrito acima foi narrado para mim, por uma amiga ciclista, que ficou “constrangida”, com o que estava testemunhando e tentou interceder para que o locutor também se reportasse aos ciclistas invisíveis, (maioria presente nas ruas do Brasil e no passeio da emissora de rádio), que não pertencem aos grupos de ciclismo da cidade. (Aos olhos do senso comum do locutor, destacavam-se apenas os ciclistas de uniformes, sapatilhas, luvas, óculos espelhados, capacetes e bicicletas aro 29).

É sempre bom lembrar o artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

 ciclista e trabalhador da reciclagem, região do aeroporto, bairro Jequiezinho, em Jequié – BA. @cicloolhar

(Em uma palestra ocorrida em Jequié, organizada por um grupo de ciclismo, sobre segurança no pedal, o palestrante externou que “os ladrões preferem bicicletas aro 29, porque bicicletas aro 26, são bicicletas de quebrados”). 

Os exemplos do comportamento do locutor e da fala do palestrante revelam que precisamos focar na base, (principalmente nas escolas) e nos grupos de ciclismo, trabalhando para desconstruir o mercantilismo que oferece o ciclismo RoboCop, comprado e propagado por muitos(as) na onda, moda, empolgação fast-food que contamina, põem em risco a simplicidade da bicicleta.

Bons equipamentos, acessórios, uniformes e uma boa bicicleta são importantes, para pedalar com segurança, conforto, tecnologia, porém não nos faz um/uma ciclista maioral, ter acesso ao que existe de melhor no ciclismo não nos dar o direito de classificar quem é ciclista ou não, aros de bicicletas 26 ou 29, forma de vestir, não devem ser utilizados para medir o estrato social de ciclistas.

 cicloviajante na BR 116 Rio-Bahia, região de Manoel Vitorino – Bahia. @cicloolhar

Se vestir como o RoboCop, não nos concede o direito de policiar quem são os maiorais na comunidade ciclística, seres humanos não podem ser medidos com o quadro de ferro, alumínio ou carbono. Respeitamos os adeptos do mercantilista ciclismo RoboCop, contudo que sejamos respeitados nas infinitas formas de pedalar, que nasce da subcultura da bicicleta.

Propomos que pergunte para o seu grupo, o que nós (como coletivo) temos feito para pressionar o legislativo e executivo local para que tenhamos políticas públicas para o ciclismo na (nossa) cidade?

Vamos criar mobilizações, um consórcio da cidadania pró-ciclismo, pressionar os congressistas para que o preço da bicicleta, acessórios e equipamentos ciclísticos sejam mais acessíveis com uma carga tributária justa.  

Ciclista mulher, leva na sua bicicletas alimentos comprados no Centro  de Abastecimento Vicente Grilo, Centro de Jequié – BA. @cicloolhar

Certa vez, na porta de uma fábrica em Jequié, um operário, ciclista invisível, afirmou para mim, que não teria condições de participar de um grupo de ciclismo “porque as roupas e bicicletas são muitos caras e não teria condições de comprá-las (…) não uso capacete porque não tenho uma boa bicicleta”. O ciclismo deve incluir. Não excluir, se o operário, ciclista, enxerga os grupos de ciclismo como um ambiente de gastos, algo está muito errado.

O Brasil é um país de históricos e perversos contrastes, agora, por exemplo, muitos brasileiros estão vivenciando a fome, pandemia, desemprego, e o ciclismo coletivo de verdade, deve levar estes fatores em consideração, ter sensibilidade, observando a realidade local, o bolo mal dividido, isto não significa filantropia, é preciso mais empatia coletiva, menos mercantilismo, mobilização com prática cidadã pró-ciclismo, “se o ser humano tem direitos, tem também deveres, como o cuidado dos mais vulneráveis e também da criação”, nos faz refletir Papa Francisco, no giro onde afirma: “não há paz sem a cultura do cuidado”.

Pedale sempre pensando no giro da nossa casa comum, (respeitando quem pedala diferente de você).

Dado Galvão, é documentarista e ciclista, idealizador do Movimento @cicloolhar