O Brasil não conhece o Brasil. Ao contrário do que se imagina, o Brasil é feito de gente simples, seu maior contingente populacional. Gente que vive à sombra da indiferença nossa de cada dia, ocupando a gaveta do esquecimento das entidades públicas e dos homens do poder. Mas, é lá, naqueles torrões de terra ilhados sob o sol do sertão, que esta gente espera por você, por mim, pelos que podem colaborar com a sua atenção. E isto já é muito mais do que um dia receberam.

Cavalcante, município do nordeste goiano, tem uma história incrível! Toda reminiscência parece ainda estar viva na memória dos descendentes dos escravos fugidos para aquela região. Comportando vários povoados, Cavalcante tem em seu solo o sangue de gente que só queria o direito à liberdade. Obrigados a viverem em Quilombos, fizeram surgir neste contexto goiano o povo Kalunga.

“Calunga ou Kalunga é o nome atribuído a descendentes de escravos fugidos e libertos das minas de ouro do Brasil central que formaram comunidades autossuficientes e viveram mais de duzentos anos isolados em regiões remotas, próximas à Chapada dos Veadeiros”, conforme citação na Wikipédia.

Entre as dezenove definições ou traduções desta palavra, as que mais chamam a atenção são estas duas: lugar seguro ou tudo de bom!

© Wesley Moura/CicloMissão

Há pouco mais de um ano, tenho visitado alguns destes povoados provocando e instigando uma vivência com os nativos Kalunga. Eu, pensando que pudesse oferecer a eles um pouco do mundo do lado de cá, não imaginava a grande riqueza que encontraria ao ouvir as crônicas da vida simples desta gente que nem sabe que existe WhatsApp, Instagram, Facebook ou qualquer um desses veículos de distanciamento humano. Percebi que a verdadeira conexão está nas coisas simples.

Uma região rica em minério até os dias de hoje, com trilhas abertas há séculos por escravos e bandeirantes no olho da Chapada dos Veadeiros, oferece essas cicatrizes modais traçadas aos pés do Rio Almas. As únicas opções em mobilidade nessas regiões são por meio de burros, cavalos e na maioria das vezes a pé, provocando um atraso histórico na vida desses atores rurais. Com a estratégia voltada para não serem capturados, os escravos fugidos se esconderam em grutas, choupanas e entre vales e serras onde apenas um carro 4×4 nos dias de hoje e com muita dificuldade pode chegar.

Dona Daínda, uma líder Kalunga que vive na comunidade de Vão de Almas, com quem já estabeleci amizade, diz que “só com muita força de vontade e se a gente quiser conseguimos chegar lá”, seja “lá” aonde for, indicando a esperança naqueles olhos cansados de sertão.

© Wesley Moura/CicloMissão

Cheguei há um ano no povoado do Engenho II para a entrega de 40 bicicletas às crianças que escreveram cartas para o Papai Noel dos Correios. A ONG que eu trabalhava ofereceu as bikes. Conversando com os professores e líderes comunitários, me foi informado que se bicicletas fossem entregues no Vão de Almas e Vão do Moleque, povoados de muito difícil acesso, aí sim o ícone de felicidade ganharia uma utilidade maior do que para diversão. Serviria para a locomoção de crianças de 4 a 17 anos que caminham horas, às vezes até 10 km, para chegar nas escolas atravessando rios, enfrentando o escuro, o frio e todo tipo de infortúnios, tão somente para poder estudar. Fazem isto para ser gente.

Com a ausência de pontes e acessibilidade adequada, verifiquei que a bicicleta seria, de fato, uma conquista importantíssima. Mergulhei de cabeça, corpo e alma na cultura Kalunga, a fim de compreendê-los melhor. Vi um ser humano com traços primitivos, acuado. Homens, mulheres e crianças com traços físicos firmes, com uma boniteza delicada e ao mesmo tempo rústica, mas igualmente espetacular!

Parece que mesmo depois de 129 anos da abolição, outros padrões e modelos de escravidão ainda permeiam a rotina dessa gente.

Vale relembrar:

“a Lei Imperial n.º 3.353, mais conhecida como Lei Áurea, sancionada em 13 de maio de 1888, foi o diploma legal que extinguiu a escravidão no Brasil. Foi precedida pela lei n.º 2.040 (Lei do Ventre Livre), de 28 de setembro de 1871, que libertou todas as crianças nascidas de pais escravos, e pela lei n.º 3.270 (Lei Saraiva-Cotegipe), de 28 de setembro de 1885, que regulava “a extinção gradual do elemento servil”. (Fonte: Wikipédia).

Perambulando pelas comunidades, vi crianças à mercê da própria sorte, sem perspectivas de uma vida melhor. Elas encontram na escola o fio de esperança para reverter seus bloqueios emocionais e sociais.

Decidi fazer a minha parte, ao tentar ajudar esses meninos e meninas. Tomei uma decisão que se transformou num projeto social chamado CicloMissão. Comecei a mobilizar amigos, igrejas, sociedade civil em Brasília – DF, enfim, para que pudessem doar material escolar, bicicletas usadas, roupas e brinquedos, entre outros itens.

Fizemos um breve levantamento, com o apoio da Secretaria de Educação do município, de quantos alunos havia nesses povoados, e chegamos a um número de 400 alunos. “Wow… é muito menino, como eu vou fazer?”, pensei.

© Wesley Moura/CicloMissão

Criei uma página no Facebook e comecei a mostrar fotos e vídeos das minhas incursões naquelas localidades. Conversei com as crianças e fiz pesquisas para saber se a bicicleta seria de fato um benefício. Em minha primeira visita, não tinha ideia de como seria lá, e sempre me perguntava se a bicicleta serviria para eles. Depois de duas horas subindo e descendo serra, atravessando rios, parando pra ver como estavam os pneus dos carros que nos levavam, me deparo com uma cena, ao descermos uma chapada de perder de vista, por volta das 10 horas da manhã: três crianças em uma bicicleta aro 20.

Uma sentada no banco, era o pedalante e guiava o guidão; a outra sentada no cano da frente do quadro, era o freio, e a de trás, era a carona com seus pés descalços apoiados nos parafusos da roda traseira. Cada um não devia ter mais que 10 anos de idade. As meninas com seus lenços branquinhos segurando os cabelos bem amarradinhos. E o garoto, o herói delas. Aquele que com a força de um homem adulto, conduzia suas lindas colegas ao ambiente escolar em sua bike coletiva. Saquei minha câmera e fiz o registro. Pedi para que olhassem pra mim, e parassem por uns minutos, queria conhecê-los. De repente, o herói grita: “Freia aí, Larissa!” Então, destemidamente, ela enterra seus dois calcanhares no chão quente da Chapada, e param pra me ouvir.

© Wesley Moura/CicloMissão

Viramos amigos. E fui com eles até a escola, uma choupana simples de adobe e telhado de folha de buriti.

Daí em diante geramos no coração desses meninos a chance de sonhar com uma bicicleta.

O grande conflito apenas começava. Voltei pra Brasília com muito material, fotos, vídeos e histórias de superação pra deixar qualquer “Papillon” de boca aberta. Então, fiz um breve relatório e comecei a pedir. Insistentemente pedia bicicletas usadas, dinheiro pra consertar essas bicicletas, roupas, remédios, material escolar, enfim, o que fosse possível. E as pessoas se mobilizaram e conseguimos levar no decorrer de todo o ano toneladas de coisas. Mas o principal, as bicicletas, ainda não tínhamos.

O desespero começou a querer tomar conta, mas seguimos em frente. Pensamos em desistir diversas vezes, mas sempre éramos encorajados a permanecer firmes. Conseguimos 100 bicicletas, mas 24 foram roubadas de nós, e outras 20 foram doadas por engano a outra instituição. O que já não era suficiente perdeu mais fôlego. Adiamos várias vezes durante o ano a entrega das bicicletas e a ansiedade no coração das crianças era grande.

Nunca os vi murmurar, nunca os vi reclamar porque as bicicletas não chegavam. Ao contrário, sempre celebravam ao máximo a expectativa e a possibilidade de dar certo.

Com muita dificuldade, depois de vários meses de espera, enfim nos restaram 30 bicicletas. E decidimos então, mesmo sem ter batido a meta de 400 bikes, dar um jeito de levar assim mesmo. Era menos de 10% do total esperado, mas era tudo o que tínhamos. A prefeitura do município providenciou os transportes que precisávamos pra levar essas bicicletas. O caminhão quebrou, o motorista errou a escola e o caminho. Lá não tem energia elétrica e muito menos sinal de celular, e guiados pela sabedoria de quem anda ali todos os dias, tentamos perceber as marcas de pneus no chão arenoso pra saber se o caminhão passou. Até que encontramos e resgatamos as, então, 29 bicicletas, pois ainda fomos roubados em mais uma bicicleta. É de chorar!

Cinco horas depois chegamos às duas escolas que receberiam as primeiras bicicletas. Os meninos aguardavam afoitos. Enfim, os últimos reparos e começamos a entregar. E mesmo tendo sido roubada uma bicicleta, as 29 bicicletas alcançaram exatamente todas as crianças destas duas escolas e nenhuma delas ficou sem bicicleta.

Foi pra nós como se um ciclo tivesse sido fechado. A alegria das crianças e dos pais era tamanha que não cabia dentro deles e escorria pelos olhos. Pois, ao menos para aqueles 29 meninos e meninas, a caminhada de duas horas seria reduzida pra 40 minutos ou menos.

Promovemos um mini curso de pequenos reparos e deixamos suprimentos básicos para as manutenções. Remendos, câmaras de ar, cabos de aço, óleo lubrificante e ferramentas. Tudo fruto de doações.

Depois que mergulhei no universo Kalunga, o Caminho da minha vida tem me proporcionado a alegria de encontrar seres que precisam ser melhor compreendidos, amados e enxergados como gente!

A boa notícia é que decidimos continuar com esta luta. Vamos conseguir levar mais bicicletas, tenho certeza, mas contamos com a sensibilização de mais pessoas. Desejamos neste ano garantir justiça e o alívio do sofrimento dessa gente por meio da sensibilização que a bike pode promover.

Quem quiser colaborar ou participar de alguma maneira, entre em contato:

E-mail

Facebook