O oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul não é o mesmo há três anos, desde que o ex-ciclista profissional Douglas Moi Bueno idealizou e colocou a mão na massa para dar à luz o Desafio Desbravadores, um circuito que atualmente realiza uma competição por mês em doze cidades da região.

Sempre com a proposta de se tornar, além de uma competição, um desafio pessoal, uma experiência de vida, o Desafio Desbravadores inspirou-se na saga dos bandeirantes, que pelas matas fechadas desbravaram o Brasil de norte a sul a partir do século XVI e hoje transporta o espírito ciclístico para todas as cidades da região.

Como todo bom filho, o Desbravadores hoje começa a caminhar por conta própria e com isso boas histórias acabam surgindo em cada competição. Esta que vou contar agora ocorreu na última etapa, de 28 de setembro, no Desafio Avelino Bragagnolo de Mountain Bike.

Aliás, antes de começar, tenho que lembrar que o patrono da competição, o “seu Avelino”, como é conhecido, é ele mesmo um desbravador. Saiu jovem do Rio Grande do Sul, há cinquenta anos, com o propósito de revender mercadorias de cidade em cidade, até que, depois de muito trabalho, fundou uma pequena serraria que é hoje uma das maiores empresas de embalagens do país. A empresa leva a sério a sua responsabilidade social, e além de praticar há décadas a reciclagem e o reaproveitamento de resíduos, produz sua própria energia elétrica, mantém extensas áreas de reflorestamento e atua nas áreas sociais através da dança, música e esporte.

Mas vamos logo ao que interessa e me deixem apresentar os personagens de hoje. Personagens de carne e osso: Jaqueline e Tito Bossini casaram cedo. E cedo tomaram gosto pelo ciclismo. Ela tinha 17 anos quando deu o “sim”. Ele mal tinha completado 24 anos. Há três anos participam de praticamente todas as etapas do Desafio Desbravadores, numa união que se fortalece a cada quilômetro rodado em cima das bicicletas.

Quem acompanha o Circuito já sabe. Basta abrir as inscrições e lá está o nome de ambos, sempre um ao lado do outro. O que não esperavam é que, naquele 28 de setembro, como se fosse um aniversário de casamento, pudessem renovar seus votos de fidelidade e companheirismo em meio ao barro, lama, frio e um câmbio quebrado. Mas foi o que aconteceu.

“Chovia e chovia, sem trégua”.

Jaqueline, uma morena de 1,60 m com meigos traços indígenas, contou que foi dormir na noite anterior preocupada. “Chovia e chovia, sem trégua”. O percurso, ela já sabia, exigiria mais que o de costume, com uma trilha técnica de 4 km apimentada pelas condições climáticas. O treinamento prévio a deixava mais confiante e o jeito foi descansar e se hidratar bem para o Desafio. Organizada como sempre foi, separou na noite anterior ainda todo o equipamento necessário. Sapatilhas lado a lado, capacete, óculos, luvas. Uma última conferida na pressão dos pneus.

O marido, Tito, ficou responsável pela lubrificação das bicicletas e pelas últimas regulagens. Com 1,84 m, parece ter o dobro da altura da esposa. O perfil atlético e esguio não deixa dúvidas: é talhado para o ciclismo. Lado a lado, a bicicleta dele parece ser de adulto e a dela de criança. Mas isso é só a primeira impressão. Ela usa uma Scott Spark 35 de carbono aro 26 e ele uma Specialized Stumpjumper aro 29, duas máquinas de desbravar montanhas.

Mesmo com tudo visto e revisto, Tito foi dormir com “uma enorme preocupação”. A chuva ressoou no telhado e nas janelas a noite toda e foi só o despertador dar 6 h da manhã de domingo para ambos pularem da cama. Frutas e pão, café forte, seguidos de uma sessão de alongamento. Bicicletas no carro e em pouco menos de uma hora já estavam na cidade de Faxinal dos Guedes, a 55 km de Chapecó, onde ocorreria a etapa.

Aquela tensão inicial de começo da prova estava evidente no rosto de todos. Alguns menos preparados improvisavam corta-ventos com sacolas plásticas. Tito e Jaque foram aquecer os motores. Pedalaram ao redor da praça por aproximadamente trinta minutos, depois de retirarem o kit e assinarem a súmula, instalarem o número na bicicleta e aproveitarem os brindes da organização com a “família” que acaba se formando entre os participantes mais assíduos. Abraços e cumprimentos a todos, troca de informações, comentários sobre os treinamentos, a prosa flui com naturalidade. O assunto é apaixonante: ciclismo!

Como de praxe, pontualmente a prova largou às 8 h 30 min, com o carro-madrinha nos primeiros quilômetros neutralizados. O ronco das motos que abrem caminho e dão segurança levanta o batimento cardíaco. Mas a ansiedade some exatamente no instante em que o diretor da prova dá a largada. O barulho dos pedais nos clipes e da corrente nas catracas é um poderoso ansiolítico.

© Desafio desbravadores / divulgação

Tito vinha de meses de treinamento intenso. Sentia-se preparado e forte. Pretendia disputar as primeiras posições de sua categoria. Além de conhecer o percurso, confiava no equipamento. Jaque, mais cautelosa, mas não menos competitiva, também mirava no lugar mais alto do pódio. E de fato, conseguiu acompanhar o pelotão masculino por aproximadamente 12 km, até que uma queda mudou tudo… para melhor.

Enquanto Tito se mantinha com o primeiro pelotão, na ponta, aproximando-se da trilha, Jaqueline seguia firme e confiante. Aquela sensação de falta de ar, de desespero já tinha passado. Ao chegar à trilha, Jaqueline viu que o “bicho ia pegar”. A lama, densa, abraçava os pneus, e a água também disputava posições no meio das pedras. O terreno se tornou escorregadio e as subidas, que no treino pareciam apenas moderadamente técnicas, se tornaram impossíveis. O esforço se tornou descomunal, o equilíbrio precário e aí foi inevitável. Uma pedra com mais limo, um detalhe e a queda, que além de atingir em cheio uma das panturrilhas e a coxa direita, levou consigo toda a sua autoestima. A decisão mais difícil veio em seguida. Desistir?

Normalmente Jaqueline e Tito se despedem na largada com um beijo e só se reencontram no final, na linha de chegada. Desta vez foi diferente. A trilha, a lama, a chuva, tudo mudou o destino da prova neste dia.

Tito lembra que ao chegar na trilha, as marchas da sua Stumpjumper começaram a enroscar, até que, em determinado momento, a corrente simplesmente travou. Não era só falta de lubrificação. “Parei na trilha e perdi vários minutos tentando entender o porquê daquela situação; eu não conseguia mais pedalar, a corrente simplesmente travava. Nesse momento me vieram mil coisas na cabeça, até que fui ver que a gancheira estava torta. Na hora me veio aquele pensamento: por que isso vai acontecer justamente comigo e agora!?”

Se ele, que era o mecânico das bicicletas em casa, estava com aqueles problemas todos, como estaria a Jaqueline? Alguma coisa falou mais forte no fundo do peito e Tito, reticente, tentou não dar bola para a intuição. “Ela é muito cuidadosa, deve estar vindo com muita cautela”. Mas o sexto sentido não é privilégio feminino. O gigante Tito – gigante de coração – mostrou que cavalheiros são feitos de ações. Mesmo perdendo todas as chances de pódio, mesmo sendo desqualificado, por não completar o percurso principal, de 40 km, não se importou e seguiu seus sentimentos. Decidiu esperar pela esposa, que podia estar sofrendo com o frio.

Enquanto isso, Jaqueline repetia para si mesma: não vou desistir, não vou desistir! Jaque seguiu empurrando a sua Scott Spark, desviando os pensamentos. Mata fechada por todos os lados, reflorestamentos, gritos de aves nativas, a densa intensidade da Mata Atlântica, que tanto deslumbrava, agora era assustadora.

Os pés, em contato com a lama e a água fria – devia estar perto de 12°C – foram transferindo frio para as pernas e daí para o resto do corpo. Dores nas panturrilhas insuportáveis. “Não tinha jeito, pensei em desistir, imaginei se havia alguma razão para eu me impor aquele sofrimento, imaginei minha cama, um banho, uma xícara de chocolate quente”. Mas Jaque continuou, e foi forte, mesmo vendo uma de suas adversárias ultrapassá-la poucos metros antes de acabar a trilha. Tudo parecia escorrer por água abaixo, tal como aquela lama fria.

As catarinenses não são moles. O espírito guerreiro está na alma de cada uma delas. Com a Jaqueline não seria diferente. Ao ver que ficaria para trás, retomou o ar nos pulmões, ajustou o pedal e focou no seu objetivo. “Tomei coragem e subi novamente na bicicleta. Terminei aquela trilha danada pedalando muito forte. Cada metro, cada centímetro era uma vitória”. Logo em seguida uma subida mais íngreme completava o crux da etapa, e foi ali mesmo que Jaqueline retomou a primeira posição.

© Desafio desbravadores / divulgação

Foram uns dez minutos até que, terminando aquela subida descomunal, Tito viu sua companheira de vida. Jaqueline era irreconhecível. Coberta de lama dos pés à cabeça, o único detalhe que a identificava era o sorriso, que mostrava os dentes (ainda) não cobertos pelo barro.

É curioso ouvir de cada um o que sentiu neste momento. Para Jaqueline, “quando eu o avistei senti uma alegria enorme, e quando ele disse ‘eu vou com você’, pensei: agora nada vai fazer eu parar! Nem as dores, nem o frio e muito menos a chuva!”. Tito me confessou que o sorriso meigo da Jaqueline o fez forte de novo. “Ela em todo o momento me dizia, ‘eu não sinto mais os dedos dos pés e nem das mãos, não sei se vou aguentar’, e eu lembrava a ela: ‘calma, vamos lá, você é forte e consegue, vou te ajudar a chegar lá!’.

Os dois se abraçaram. Bastou um novo olhar para que soubessem que agora sim, juntos, podiam ir até o final – e muito mais além, se fosse preciso!

Mesmo com as pernas inchadas e as cãibras insistindo em chegar, mesmo sem sentir os dedos dos pés e das mãos, e com os lábios amortecidos do frio, Jaqueline continuou forte. Tito utilizava a velha tática do “papo de ciclista” para encorajá-la. A cada começo de subida dizia que “é só mais esta, é a última, tenho certeza, vamos, você é forte”. E assim se seguiram várias “últimas subidas”, na parceria, na cumplicidade, no amor.

A emoção da chegada do Tito e da Jaqueline não se expressa com palavras. Nem mesmo a foto conseguiu capturar a força daquele momento. Foram horas juntos, no limiar da dor, do esforço, mas, como lembra o Tito, “a emoção de ter passado a linha de chegada com ela, depois de tudo aquilo, foi indescritível. Sim, eu faria tudo de novo, foi um momento único, de muita aprendizagem e reflexão”.

“Juntos conseguimos ser mais fortes do que pensamos”

A música diz que “o amor tem feito coisas que até mesmo Deus duvida”. Depois daquela queda, de todo o frio, da lama, dos problemas mecânicos, ambos concordam: completar os 26 km do Desafio Avelino Bragagnolo foi obra do amor. “Junto dele sou mais forte”, disse Jaqueline. Curiosamente, Tito me disse quase o mesmo: “Juntos conseguimos ser mais fortes do que pensamos”. Votos de amor? Sim! Bodas de bicicleta!